Design para um mundo complexo | Rafael Cardoso

Julia Resende
7 min readAug 27, 2023

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Este texto não chega a ser uma resenha do livro do historiador da arte Rafael Cardoso, escrito em 2011 e publicado com a edição da Ubu em 2016. É um resumo feito a partir de uma leitura atenta, porém sujeito ao ponto de vista autora — afinal, o olhar nunca é isento.

Imagem da capa do livro retirada do site da Ubu Editora. O projeto gráfico de 2012 é assinado por Elaine Ramos e Ana Sabino.

“O design nasceu com o forte propósito de pôr ordem na bagunça do meio industrial” é o que afirma o autor, logo na introdução do livro, ao situar o surgimento do campo entre o final do século XVIII e início do XIX — período que corresponde ao surgimento das fábricas na Europa e nos EUA –, início da chamada sociedade de consumo. Nesta época, as atividades de projetar e fabricar artefatos migraram para o centro dos debates políticos, econômicos e sociais. E, com isso, diversos profissionais (artistas, arquitetos, engenheiros) e diversas instituições (escolas, museus etc.) se empenharam em melhorar o gosto da população e a configuração das mercadorias oferecias.

Foi mais ou menos no final deste período, mais precisamente em 1930, que o mote “a forma segue a função”, proferido pelo arquiteto Louis Sullivan, tornou-se popular e, até os dias de hoje, quase um século depois, ainda é repetido. O livro do historiador da arte e do design Rafael Cardoso vem, justamente, questionar este mote — e vários outros dogmas — repetido de forma extenuante por designers e não-designers.

Cardoso parte do pensamento de Victor Papanek, designer norte-americano, que em 1971 publicou o livro Design for the real world (Design para o mundo real). Questionando de frente o mote de Sullivan, lema do design modernista, Papanek defendia que os designers deveriam olhar para o seu entorno — o mundo real — para que aí sim projetassem soluções que fizessem sentido. Esta era a época da ascensão da contracultura. Movimentos estudantis explodiam na Europa, conflitos raciais, políticos, guerras civis e lutas de independência aconteciam ao redor do mundo e uma anunciação de uma crise climática porvir ditavam o contexto em que o livro fora escrito e publicado. Desde então, o mundo real de Papanek tornou-se ainda mais complexo, com a “era da informação” e explosão das mídias digitais. Contudo, o convite ao pensar o design (e por conseguinte o designer) como ator geopolítico permanece na obra de Cardoso.

Já na introdução do livro, o autor coloca em cheque o pensamento funcionalista apresentando exemplos que provam que a ideia de que a ornamentação compromete o funcionamento do artefato é falsa e que o “parecer funcional” é uma escolha estética — dentre tantas outras possíveis. A ideia de que a aparência, a configuração visual, de um artefato é capaz de expressar conceitos complexos é uma das grandes discussões do campo do design abordada no livro. Para se entender o que significa “a forma segue a função”, Cardoso decupa a palavra forma e a ideia de função. Forma seria então “o resultado de uma tensão entre interno e externo, construção e expressão (CARDOSO, 2016, p. 33).

O design como processo e como resultado está embutido em um intrincado sistema cultural e, ao mesmo tempo em que é influenciado por este, também é capaz de influenciar a cultura, criando e moldando diferentes significados em um processo contínuo de significações. Neste contexto, o que é produzido pelos designers (resultado) está sempre condicionado ao olhar desses sujeitos da cultura, condicionados pelas premissas de sua época. “O olhar é uma construção social e cultural, circunscrita pela especificidade histórica do seu contexto” (ibid., p. 37), portando, à medida em que os tempos mudam, muda com eles o significado das coisas que parecem fixas. Por isso, é preciso sempre se perguntar: quem olha? A partir de onde? Procurando o quê?

No primeiro capítulo, “Contexto, memória e identidade”, Cardoso provoca o leitor sobre as diferentes formas de ver os Arcos da Lapa no Rio de Janeiro. Partindo deste exemplo, ele demonstra que os todos os objetos são mediados por um sistema simbólico — uma vez que os seres humanos são seres de linguagem — que condiciona a percepção que temos dos mesmos:

“O fato é que elegemos perspectivas melhores ou piores, corretas ou erradas, e formamos uma hierarquia de modos de ver. Essas hierarquias são construídas culturalmente ao longo dos anos. (…) O ser humano pensa sempre por meio de linguagens que tem à disposição, e estas são codificadas pelo acúmulo de atividade antecedente naquele domínio.” (ibid., p.83)

Uma vez situado o objeto no tempo, no espaço e, principalmente, na linguagem, o segundo capítulo, intitulado “A vida e a forma das coisas”, trata da significação como um processo dinâmico. Logo na primeira frase, Cardoso já golpeia o leitor funcionalista afirmando que “não existe função, existem funções” (ibid., p.101). Em seguida, ele percorre a ideia de que há uma confusão ao se afirmar que algo é “funcional” como sinônimo de algo que funciona, para aí sim apresentar o conceito de “forma-tipo”, um ideal do design modernista que seria a forma perfeita que um objeto deveria ter, uma vez que sua morfologia se adaptasse exatamente à sua “funcionalidade”. Os designers que seguiam este pensamento acreditavam que uma vez atingida a forma-tipo, a produção em massa garantiria a feitura de uma grande quantidade de produtos para todos e para sempre. Bom, o mais próximo que chegamos a isso historicamente foi na União Soviética. Afinal, não é assim que o capitalismo opera, tampouco existe um ideal platônico formal para os objetos produzidos pelos seres humanos.

A aparência dos artefatos nunca é neutra e sempre carrega consigo uma dimensão imaterial, simbólica e associada a uma séria de informações, como “valores e juízos ligados à nossa história, individual e coletiva” (ibid., p. 111). O design de um artefato, portanto, é capaz de estimular comportamentos e, por isso, é importante que saibamos ouvir o que as formas falam. Para entender melhor esse processo, o autor mostra que a construção de sentido na sociedade industrial parte de três fatores: a fabricação, a distribuição e o consumo. A “cultura material” é, portanto, um vestígio da coletividade humana. Os artefatos são expressão concreta daquilo que nos rege: pensamentos, comportamentos, ideais, valores, circunstâncias políticas, econômicas etc. Todo artefato, por sua vez, é fruto de linguagens (repertório de formas e técnicas de fabricação) pré-existentes e sujeito a transmutabilidade de sentidos ao longo do tempo.

À medida em que materialidade do objeto permanece no mundo mesmo depois que seus sentidos mudam é preciso pensar a relação produto-artefato. O campo do design compreende como “produto” apenas a fração do objeto da sua fabricação ao seu descarte. Este é o ciclo de vida de um produto. Quando esse ciclo acaba e o produto se torna lixo, ou seja, matéria desprovida de sentido, ele não deixa de existir no mundo — salvo raras exceções. Por isso, é preciso que os designers pensem na criação de forma sistêmica, modular e durável. Só assim o ciclo de vida de um produto poderá deixar de ser entendido como algo linear, e poderá ser compreendido como uma cadeia espiralar.

Por fim, o terceiro capítulo, “Caiu na rede é pixel”, trata dos desafios e possibilidades que um mundo complexo e cada vez mais imaterial oferece. Partindo da ideia das redes como a grande metáfora do mundo contemporâneo, Cardoso põe essa ideia em perspectiva relembrando que cem anos antes tudo era comparado a máquinas (o corpo era a máquina humana, a casa era a máquina de morar) e que trezentos anos antes tudo era comparado ao corpo (a nação é o corpo político). Em seguida ele constrói o princípio de rede a partir de exemplos materiais: é aquilo que retém algumas coisas e deixa passar outras.

Em seguida, o autor, como bom historiador, percorre uma breve história das redes para então concluir que “no mundo industrial tudo é interligado” (ibid., p. 187). À medida em que diferentes redes vão se interconectando, surge uma rede que abarca todas as outras: a rede de informações. Mesmo antes da internet, a malha informacional já existia e, para orientar o “navegador”, nos fazemos valer de sistemas de sinalização como placas, letreiros, jornais, propagandas etc.

O mais interessante nesta digressão de Cardoso foi aprender que o ano de 1830 foi fundante para o mundo contemporâneo. “Pela primeira vez era possível transmitir uma informação mais rápido que transportar uma pessoa” graças à telefonia. Também data desta mesma década a industrialização da produção gráfica. Essas transformações preconizavam o início da imaterialidade — e de seu funcionamento aparentemente autônomo — das redes virtuais de informação, hoje, conhecida como “internet”. As redes, no entanto, dependem sempre de interfaces para funcionar, para se fazerem visíveis. Não à toa, no início do século XIX, surge a ideia de grid. Grid nada mais é do que uma forma esquemática de pensar em termos de quadraturas, diagramas e interseções o espaço visual. É uma codificação visível e legível da malha informacional.

O autor encerra o capítulo traçando um paralelo entre as interfaces físicas e as digitais, apontando as similaridades de design entre elas. Para Cardoso, “a rede é tanto um fenômeno de design quanto de informática” (ibid., p. 207), uma vez que a internet é tão imaterial que temos o anseio de gerar visualizações — materializações — daquilo que não pode ser visualizado. No entanto, dada a complexidade da imaterialidade, as representações são fluidas e se deslocam de seus referenciais de modo errático — as coisas se tornam “reflexos de reflexos de reflexos” (ibid., p. 197).

Com isso, o autor conclui que embora façamos uso da mesma linguagem, o mundo virtual opera de um modo bem distinto e um tanto mais complexo que a atualidade. E, por isso, no capítulo de conclusão, faz um apelo aos docentes de design e aos designers: pensem e questionem velhos preceitos! Em um mundo tão complexo percorrido ao longo das 254 páginas do livro é preciso destruir velhos dogmas para que os designers tenham possibilidades de atuação como conectores das infinitas redes que nos cercam.

CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

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Julia Resende

Designer, leitora e curiosa. Escreve aqui sobre design e cultura material e mostra suas criações no @julia_____resende